quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Facilmente se diz o que nas mãos não cabe…

Desistirá de toda a esperança se lhe ordenares,
Permanecerá difusa, com as mãos vazias e o coração acelerado.
De repente dará uma volta, três voltas se possível,
De graus diferentes, de vertigens rápidas,
Sempre no caminho que traça com os olhos apaixonados pelo ar.

Na distância do que foi e do que a fará permanecer
Os gestos como lanternas acesas, as palavras como faróis que guiam
A facilidade do sol que a aquece.

Facilmente te dará o que não lhe cabe nas mãos…

Filipa Rodrigues

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora
aquela gente que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa
com que nós a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal"

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água
entre o azul do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti,
e o teu nome ilumina as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio
são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol,
à chuva, de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

sábado, 22 de maio de 2010

a espera / à espera...

perdi-te algures, não sei onde.
Encontro-te no meu olhar reflectido.
vejo-te a ti e a mim, naquele que outrora foi o nosso lugar.

voltarás?



Fotografia de Rattus in Olhares.com

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Uma Paixão

Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

vemver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

vem antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne
a paixão derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

vem com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto