segunda-feira, 30 de abril de 2007

Vontades

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

Camões


By Júlio Pomar

As cores da solidão


"Como quando passava a correr e as estações do ano eram as cores da minha solidão. Profunda e cheia de significados impartilháveis. Havia muito tempo que eu conhecia a minha solidão: todos os pensamentos que tinha sobre o silêncio, palavras a perseguirem um eco que nunca alcançavam. Era na dificuldade da minha solidão: caminho negro de estátuas que eu me edificava. Aquela manhã era feita de momentos que pertenciam a esse tempo. A serradura que cobria o chão tornava-me silencioso."
In, O Cemitério dos pianos, José Luís Peixoto

Piano


"Havia pianos encaixados de todas as formas possíveis. Nas folgas onde não se encaixavam completamente, a claridade atravessava teias de aranha abandonadas que seguravam gotas de água, como pontos de brilho. O ar fresco do cemitério dos pianos entrava nos pulmõess e trazia o toque húmido do pó pastoso que era a única cor: o cheiro de um tempo que todos quiseram esquecer, mas que existia ainda. O silêncio desprendia-se dessa cor clara e antiga. A luz atravessava o silêncio."
In, O Cemitério dos pianos, José Luís Peixoto

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Guernica


By, Pablo Picasso

Maria Antonieta



by, Erwin Olaf

Ernie Watts

Silêncio

"Depois do silêncio, a música é o que melhor exprime o inexprimível!"
Aldous Huxley

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Signifying Monkey

The signifying monkey spied the lion one day
And said, ´I heard something´bout you down the way.
There´s a big motherfucker lives over there,
And the way he talks would curl your hair.
From what he says he can´t be your friend,
Cause he said if your two asses meet, yours is sure to bend,
This burly motherfucker says your mammy´s a whore
And your sister turns tricks on the cabin floor
And he talked about your wife in a hell of a way
Said the whole jungle fucked her just the other day..´

By Lou - Harlem prison

By Patricia Almeida

Malgosia


 

by, Erwin Olaf

A Rapariga com Muitos Olhos

Um dia no jardim
fiquei muito espantado:
encontrei um miúda
com olhos por todo o lado.

Era de facto encantadora
(e também assustadora!);
e, porque tinha boca para falar,
pusemo-nos a conversar.

Falámos sobre flores
e das suas aulas de poesia,
e dos problemas que teria
se tivesse miopia.

É óptimo namorar
alguém que tanto nos olha,
mas se desata a chorar
apanhamos uma molha.

Tim Burton
By, Júlio Pomar

Sinfonia

"Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim só me conheço como sinfonia."

In O Livro do Desassossego, Bernardo Soares

quarta-feira, 25 de abril de 2007

terça-feira, 24 de abril de 2007

O leme

"se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com a unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com sua raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição"
Al Berto, Rumor dos fogos

Para a D.














Jean Michel Basquiat

O humor em quotidiano negro


by, Erwin Olaf

A população da cidade está a aumentar, e o número de mortos cresce em proporção. Já não há espaço nos cemitérios para enterrar mais gente.
Um engenheiro teve uma ideia: enterrar os mortos de pé. E justificou «Cabem muito mais cadáveres e é mais higiénico.»
A Câmara Municipal está entusiasmada, pondo reservas apenas a que o processo seja mais higiénico. Disse um funcionário: «É um arroubo lírico do engenheiro.»

In Photomaton & Vox, Herberto Helder

Photomaton

by, Vertigo

Até quando pode a memória, e quanto pode, sou o actor e espectador cúmplice de uma vida perturbada, dramática e irónica. O pouco que percebo dessa massa teatral caótica pode inscrever-se na pauta de uma interpretação menor. Não compreendo nada.


In,Photomaton & Vox, Herberto Helder

Andy Warhol, by Richard Avedon

Fuga

Eu sei que no passo forte imprimes a
vontade constante de estar longe.
As esquinas por onde páras, aqui e ali,
deixam-te a feroz sensação de andar
perdido dentro do mundo veloz.
Cabisbaixo, olhas os pés dos outros
à espera de revelações melodiosas.
Em mim, eu sei,
seguirás como um ladrão de tempo,
sempre pronto a recomeçar.

Retiras do bolso um papel pequeno e
entregas à primeira que, por ti, passa na rua.
Dois segundos à frente sabes que a sua cabeça se voltará,
que os olhos dela se cravarão nos teus, e que,
de nada te servirá dizer ‘bom dia’.
No espanto das mulheres procuras alimento,
a reacção temível que te incitará a roubar mais um gesto ou outro.
Ninguém te fará abrandar enquanto na alma
te subsistir o desejo supremo da fuga.
Filipa Rodrigues

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Sissi



by, Erwin Olaf

LOUCURA...

Como se forma o individuo? Com o prazer... Fabricar vida é uma necessidade... deliciosa, viciosa portanto. A Natureza compreendeu que ninguém faria vida se não fosse por interesse... para gozar... E faz-se a vida só por isso... por isso só...

(...)

Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...


By Mário de Sá-Carneiro



By Rothko
Salvador Dalí

Sunflowers

Vincent Van Gogh

by Vertigo

Debussy

(…)
V

Eu hei-de amar sempre, confesso,
muitas mulheres em cada mulher,
e uma só, para sempre, em todas
quantas sei e quero amar.
Eu e os faunos gostamos da tarde
para amar e para dormir, rebeldes.
A orquestra que trago na cabeça
é um mar, uma ilha, um naufrágio,
uma pétala de púrpura e seda, envenenada.
A verdade do que faço, entende,
pode não estar no impaciente coração da música,
mas está, asseguro-te, na chama
dos meus olhos a chamarem por ti.
Quem me olhar assim, nos olhos,
sentirá o travo da paixão e o milagre luminoso
que cresce na voz quando desperto.

In, A Dúvida Melódica, José Jorge Letria

Autografia

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos meus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore imaculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toa a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteroros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no sentido enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-espedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!
Mário Cesariny
Mário Cesariny

a poesia...

[...] Deixando-se levar pela fantasia, a poesia cai na natureza. O mundo vivo, real, é o único projecto da imaginação que alcança um dia a plenitude e continuará sem fim a consegui-la. Ela dura, em todos os instantes plenos. Sempre valiosa, profunda, apaixonante. Ela não nos decepciona na manhã seguinte. Ela serve ao poeta de exemplo, muito mais que da natureza ou modelo. [...]
In Correspondência a Três, Boris Pasternak

domingo, 22 de abril de 2007

A Arte Suprema



Pedimos desculpa por esta realidade.
A ilusão segue dentro de momentos.














By António Jorge Gonçalves e Rui Zink

sexta-feira, 20 de abril de 2007

O Nosso Cenáculo

( Às minhas amigas D. e S.)

A casa tornava o tempo tenro,
E, como carne suculenta deixava um rasto adocicado em nós.
Perto da aparelhagem sempre a quantidade certa de cd
Dos quais só ouvíamos um ou dois.
Podíamos ser três, cinco, sete ou cem,
Sem que o ar ficasse sobrecarregado.

Lembram-se de como nos sentíamos sempre mais próximas do mundo e das gentes?
De como nos sentávamos aconchegadas em sofás rasgados e cadeiras duras?

Comíamos nos joelhos ou onde calhasse,
Ouvíamos as palavras saídas da voz de alguém que hoje está longe,
Escondíamos a televisão no quarto
E olhávamos para as prateleiras à procura de mais um livro.
Às vezes éramos só duas, outras as três,
Sem que no ar se manifestasse qualquer incómodo.

Ainda sentem as mãos a tocarem naqueles objectos todos, cobertos sempre do pó que trazíamos da rua?
De como atirávamos os casacos e os cadernos para cima da mesa que só tinha espaço para nós?

Na nova casa volta a sensação confortável da amizade,
Que, como nas longas noites antigas, nos faz respirar com mais facilidade.
A música que agora é maior, mais bonita, mais forte, mais sentida,
Faz-nos caminhar em direcções sempre perpendiculares.
Podemos ser uma, duas ou três
Sem que no ecrã o espaço fique exíguo.
Filipa Rodrigues

Unicórnios e Farmácias abandonadas

Já tive um carro da cor dos teus olhos. deixava-o
estacionado à frente dos prostíbulos onde alugava
quartos com vista sobre o quintal dos vizinhos.

Esperava por semáforos, sem saber que esperava
apenas por ti. No auto-rádio, a tua voz cantava
fados demasiado velhos até para a minha mãe.

A segunda circular era uma manifestação pacífica
de pára-brisas, as palavras de ordem eram simples
porque ainda não sabia que já me tinhas escolhido.

Quando os outros rapazes folheavam revistas de
carros nas aulas de matemática, eu apenas me
interessava por unicórnios e farmácias abandonadas.

Agora, os meus olhos contam quilómetros nos teus,
procuro papéis entre os papéis do guarda-luvas e
tenho tanto medo que me vendas em segunda mão.

José Luís Peixoto

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Daydreaming

Paul Gauguin

ser...apenas ser....

dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundo.
In, O Medo, Al Berto

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Teoria das Cores



Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

In, Os Passos em Volta,Herberto Helder

Para a D.

Os pés nus que atravessaram o tempo,
As pinceladas que ofereceram alguns instantes de deleite,
As sobrancelhas que agrediram sem querer.

Dentro dos dias onde procuras a inspiração para continuar… as minhas palavras que dizes salvar-te da miséria a que a rotina te condena.
Dentro das imagens desenhadas onde encontras a paz para descansar… as tuas ideias a formarem-se como folhinhas jovens.
Filipa Rodrigues

Ressaca

No momento em que a porta abre rompe-se o silêncio que imperava ali.
São dois segundos para que as vontades sejam unidas.

Na noite, sempre na noite recheada de sombras invisíveis, de gestos impensados, de cores misturadas.

Até quando eu não sei… mas a cabeça que dói, o corpo que se ressente, as ideias que não se solidificam… passa a ressaca pela manhã?
Filipa Rodrigues

Genet

“O vento que rola um coração no pátio dos recreios, um anjo que soluça preso numa árvore, o pilar de céu que o mármore retorce abrem portas de emergência à minha noite.

Um pobre pássaro que agoniza e o travo da cinza, a memória de um olho adormecido na parede e este doloroso punho que ameaça o firmamento descem-me o teu rosto à palma da mão.

Mais duro e leve do que uma máscara, o teu rosto tem na minha mão mais peso do que a jóia em dedos de um receptador quando a mete ao bolso; está afogado em pranto. É sombrio e feroz, coberto por um elmo de folhagem verde.

(…)

Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero, tão forte que uma bravia e desvairada dor aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso de luto?”

In, O Condenado à Morte de Jean Genet
José de Almada Negreiros
Retrato de Fernando Pessoa

Sensibilidade

"Para alguns que me falam e me ouvem, sou um insensível. Sou, porém, mais sensível - creio - que a vasta maioria dos homens. O que sou, contudo, é um sensível que se conhece, e que, portanto conhece a sensibilidade.
Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-á assim como cresceu. tudo é nada, a nossa dor nele."
In, O Livro do Desassossego, Bernardo Soares.

terça-feira, 17 de abril de 2007


Frida Kahlo

A sede das ruas vazias

No caminho onde os passos tortos se cansavam, tu dormias enrolado no vento que não descansava. Podias ser só o resto de todas as ruas que visitaste, o resto das palavras que ouviste enquanto passavas incógnito.
No caminho onde os passos tortos se cansavam, foste ligeiro e ávido. Perdido nos paralelos que calcavas sem olhar, solto como animais ferozes.
A sede das ruas vazias.
Filipa Rodrigues

As ruas vazias


by Vertigo

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com este vácuo, e de acabar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.
notas para o diário, Al Berto

O desterrado


by, Soares dos Reis

O sonho

"Nunca se viram estrelas empalidecer ou cair. Nunca adormecem."
In, Casa do Incesto, Anaïs Nin.

A grande aventura...

"Há apenas uma grande aventura. e essa é para o interior, rumo ao eu, e para essa não contam tempo nem espaço, nem tão-pouco feitos."
In, Trópico de Capricórnio, Henry Miller

segunda-feira, 16 de abril de 2007

O Eco do Espelho

By Pedro Magalhães
A lâmina de prata rasga a imagem e resgata a paisagem que parece fugir como quem foge de alguém.
Os corpos projectam-se verticalmente, assimetricamente.
O duplo atravessa o espelho e, do avesso, contempla-se até se perder de vista.
É a ressonância transparente da memória visual, onde o silêncio é a linguagem que transpira do torpor dos corpos, uma voz que se reflecte e se refracta em múltiplas imagens de si.
Uma passagem pela porta dos fundos?
Um portal que se abre a outro espaço?
Um desolhar, um desabandono, um desespelho.
Ou um outro tipo de tempo, de movimento, de respiração?
Tem um rio em si que não cabe em si. Uma árvore enraizada que cresce sem raízes. Um vento que se ouve mas não se abraça.
Fragmentos da natureza repercutidos no espectro natural.
Um eco de sombras e luz.
Para ver, há que escutar o espelho.
by Mara Xara

Num encontro

Alguém entra e intromete-se. No botão das calças, brilhante, desapertado, inquieto, depositam todas as esperanças. Ao fundo, a luz ténue deixa passar apenas o fumo e o calor. Mas lá dentro, sempre lá dentro escondidos do mundo que não os absolve de nada são três horas e quatro copos de gin… numa cadeira verde descansa uma serpente saciada, quase dormitando.
P. desconhece o caminho de regresso, J. acalma-se entre ondas de arrepios que não sabe de onde lhe surgem. Dissolvem-se no ar todas as bolas feitas de fumo que expelem numa espécie de competição.
Talvez já tenham dito tudo o que sabem dizer um ao outro. Olham-se como se de tudo não mais ficasse que um rasto breve.
Filipa Rodrigues

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Se o mundo acabar amanhã, se do corpo vão restar ossos, sangue ou pele ressequida… ninguém te poderá garantir mais do que dois indícios de consciência!
Filipa Rodrigues
“Todos somos construtores. De terra e de emoção andamos pelo mundo a amassar estátuas; de realidade e de sonho arquitectamos as figuras que se misturam na nossa vida. Elas existem mais pelo que lhes damos de nós mesmos do que pelo que na realidade são. De saudade, de sonho, de lodo e piedade, construíra uma figurinha ofendida e triste, andando no mundo aos tombos, sem pão e sem abrigo.”
In, Os Pobres, Raul Brandão
By Vertigo

Boas vindas a nós

O Primeiro Dia

No dia das coisas todas, juntamo-nos para mais umas palavras trocadas sem objectivo.
No dia das coisas todas, somos três de linhas diferentes, com corpos ocupados por pequenas marcas.
No dia das coisas todas, somos só, sem ser grande coisa, como se nada mais fosse tão importante quanto isto de aqui estar e ser, e deixar ser.
No nosso dia, das coisas todas, que são as nossas… somos nós e as coisas todas que fazem de nós, nós.
Neste dia, que é nosso, das coisas todas e de nós inteiras, podemos ser tudo e nada num mesmo tempo, sem ferirmos carne ou ocuparmos demasiado espírito.
Filipa Rodrigues

Annette no Estúdio, Giacometti