sábado, 30 de junho de 2007

By Berenice Kauffmann



entre as sombras gritaste
sem contudo teres ousado ser
um ponto de cor!
apenas isso...

Mark Rothko

" Homenagem a Mark Rothko

Amarelo, laranja, limão,
depois o carmim: tudo arde
nas areias
entre as palmeiras e o mar - era verão.

Mas no lugar do teu nome
a terra tem a cor do verde
pensativo, que só a noite
pastoreia leve. "

In Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade

LCD Soundsystem - North American Scum (Promo Video)

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Alprendre

no contraluz do alpendre
os ângulos do tempo assumem
o contorno voo das gaivotas

sobressalta-me o azul
(pétalas de fogo poente)

jorge casimiro



dentro do fogo que se explana
a imensidão do espaço negro
a rotação eterna da terra

sobressalta-me o azul
(espinhos de vermelho rosáceo)

Filipa Rodrigues

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Ascensão

By Salvador Dalí

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Ventos...

"Deixa que o vento do oeste
Adormeça sobre o lago
Fala em silencio com os teus
Luminosos olhos
Banha de prata o crepúsculo
E de repente
Te retiras enquanto lobo
E o leão o escuro bosque espreita"

William Blake

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Under Strange Skies




By Daniel Blaufuks

sábado, 23 de junho de 2007

Sonhar acordado...

"Era essencialmente uma contradição, como se costuma dizer. As pessoas consideram-me sério e magnânimo, ou alegre e estouvado, ou sincero e fervoroso, ou negligente e descuidado. Era todas essas coisas ao mesmo tempo e, para além delas, era mais alguma coisa, alguma coisa de que ninguém suspeitava e eu menos do que toda a gente. Aos seis ou sete anos costumava sentar-me à bancada do meu avô e ler-lhe enquanto ele cosia. lembro-me vivamente do meu avô nos momentos em que, comprimindo o ferro quente contra a costura de um casaco, parava, de pé, com uma das mãos por cima da outra, na pega do ferro, e olhava pela janela, sonhadoramente. Lembro-me melhor da expressão do seu rosto, quando sonhava assim, do que do conteúdo dos livros que lia, das conversas que tínhamos ou das minhas brincadeiras na rua. Costumava perguntar a mim mesmo que sonharia ele, que seria que o levava para fora de si próprio. Por mim, ainda não aprendera a sonhar acordado, estava sempre lúcido, no momento presente e todo inteiro. Mas o sonhar do meu avô fascinava-me. Sabia que ele não tinha qualquer relação com o que estava a fazer, que não dedicava o mínimo pensamento a nenhum de nós, que estava sozinho e, estando sozinho, era livre. Eu nunca estava sozinho, principalmente quando não me encontrava com mais ninguém."

In Trópico de Capricórnio, Henry Miller

Estonteante


By Alinn Neamtu

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Décadas...



By a.m.catarino

Sobre um poema

"Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne."
Herberto Helder

Ausência

sinto-te
na distância palpável das ondas
na paisagem sonâmbula dos dias
nos vazios de perfume que deixaste

e da essência dos rastos amanhecidos
só o gesto líquido da ausência

Jorge Casimiro

e nos dias desertos do teu corpo
sempre adiante
como proa emproada
via-te

na seiva do vento molhado
na luz lânguida a pôr-se

Filipa Rodrigues

Dizem que a paixão o conheceu...

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite
enumera o que lhe sobejou do adolescente
rosto turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante o tenha convencido
a permanecer entre os vivos

Al Berto

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Crespúsculo

By Paulo César
O luar
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
Alberto Caeiro

By Francisco Albergaria

terça-feira, 19 de junho de 2007

segunda-feira, 18 de junho de 2007

The Chosen One



By Ben Goossens

Bjork - Earth Intruders (video)

domingo, 17 de junho de 2007

Pai!

"Descansa, pai, dorme pequenino, que levo o teu nome e as tuas certezas e os teus sonhos nos espaços dos meus. Descansa, não vou deixar que te aconteça mal. Não se aflija, pai. Sou forte nesta terra nos meus pés. Sou capaz e vou trabalhar e vou trazer de novo aqui o mundo que foi nosso. Vou mesmo, pai. O mundo solar. Reconhecê-lo-ei, porque não o esqueci. e também o tempo será de novo, e também a vida. Sem ti e sempre contigo. A tua voz a dizer orienta-te, rapaz. Não se apoquente, pai. Eu oriento-me. Pai, não se preocupe comigo. eu oriento-me. E vou. Anoitece a estrada no que sobra da manhã. Chove sol luz onde está o que os meus olhos vêem. A carrinha grande que prometeste, que planeaste para nós, que ganhaste a trabalhar meses, leva-me. Onde estás, pai, que me deixaste só a gritar onde estás? Na aangústia, preciso de te ouvir, preciso que me estendas a mão. E nunca mais nunca mais. Pai. Dorme, pequenino, que foste tanto. E espeta-se-me no peito nunca mais te poder ouvir ver tocar. Pai, onde estiveres, dorme agora. Menino. Eras um pouco muito de mim. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso no que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai. Nunca esquecerei.!

In Morreste-me, José Luís Peixoto

sexta-feira, 15 de junho de 2007


By Christoph Gamper

Às Vezes o Amor - Sérgio Godinho

Para o fim-de-semana!!

Vergílio Ferreira

“(…) - Ás vezes pergunto-me, quero dizer, perguntava-me: como é que chegou tudo aqui? – disse Miguel. – Perguntava-me pergunto-me, mas não muito. Tenho asco ao porquê. É a fórmula dos desocupados, dos tinhosos, dos raquíticos. Que adianta o porquê? A razão escolhe-se para ser razão. Antes de ela ser escolhida já se foi o que se tinha de ser. Mas ás vezes perguntava-me como é que vim dar aqui?...

Não há como é que, há só o ter chegado, que é que interessa? Não me sinto confortável em parte nenhuma do meu ser, o meu erro é orgânico e não é assim erro nenhum. Mas não me sinto bem nele, devo ter nascido em mim por engano. E de súbito. (…)””

In Até ao Fim, Virgílio Ferreira


* Este texto foi-nos enviado pelo Ricardo, aqui fica... como gesto de agradecimento a um amigo!

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Chaos


By Narcis Virgiliu

Presente!




By Christian Coigny







"Já reparaste que eu me ofereço a ti em pedaços?"






Tsvétaïeva a Boris Pasternak
In Correspondência a Três

the Breeders: Drivin' on 9 (D. Leone/ S. Hickoff)

A picture


By Joyce Tenneson

Se fosse menino



A agenda vermelha em cima da mesa, pronta para se dedicar a um extenso deambular de emoções. As calças sujas de tinta e ferrugem, depois de manusear o espeto de ferro que perfurou os frascos coloridos. As mãos trémulas, os pés frios, a cabeça a latejar sem destino e com aflição. Nas pernas a pressão e as nódoas negras da noite passada.
Seguia sem olhar para o traço, sem preparar a massa, sem orientar as ideias. Uma longa e desajeitada dança em torno de objectos ainda disformes.

“Se fosse menino ia para a rua jogar futebol com os outros”, pensou.

Filipa Rodrigues

terça-feira, 12 de junho de 2007

Júlio Pomar


Tempo sem espaço

E fomos embora de repente. E voltamos. E saímos outra vez. E ficou tudo vazio, como se o tempo não tivesse espaço para preencher.
E, às voltas, como que a subir e descer escadas, fizemos buracos no jardim e fechamos tudo com tábuas.
E lemos tudo. E esquecemos os sons da estrada e dos cafés. E quisemos ser e não e voltar a moer grãos de ouro e prata.
E nós… E eles… e ninguém mais solto ou amarrado, ou vivo ou morto!

Longe as palavras que dissemos. Perto os objectos que largamos.
Tudo no início da linha, como sempre!

Filipa Rodrigues

Para o nosso C.


Um sorriso!!!

Somos...

Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos,
porque o mais, por estar realizado,
pertence ao mundo e a toda a gente.

In O Livro do Desassossego, Bernardo Soares

domingo, 10 de junho de 2007

Da Maneira Mais Simples


By Zena Holloway
É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá nome.

Ás vezes chamam-lhe paixão. Que pode

acontecer da maneira mais simples:

umas gotas de chuva no cabelo.

Aproximas a mão, os dedos

desatam a arder inesperadamente,

recuas de medo. Aqueles cabelos,

as suas gotas de água são o começo,

apenas o começo. Antes

do fim terás de pegar no fogo

e fazeres do inverno

a mais ardente das estações.


In Os Sulcos de Sede, Eugénio de Andrade

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Vozes...

O papel que geme
O lápis que grita
A cor ausente
Os hemisférios desencontrados
As vozes que não se calam
As vozes que se tornaram inaudíveis
O lume que se extingue
As lareiras de cinza
Entre copos vazios
E corpos ausentes…

Sara Gonçalves

Ensaio para um texto

Debaixo de um vinho quente as bolas de espuma da banheira a verter. A temperatura a conter o impulso de ser diferente por longos segundos. A fala abstracta, o discurso incompleto, o método alterado. As palavras todas misturadas como ingredientes. Os gestos sem calma como instrumentos de tortura. O som a desaparecer mal proferido. A luz a desaparecer sem pista. O chão a mudar de cor. O sinal a fechar-se do outro lado do vidro.
A fuga transitória para um presente que não se pretende completar.

P. levantou-se e deixou-se cair sobre si própria. “Mau ensaio para um novo texto.”

Filipa Rodrigues

HUMANOS - QUERO É VIVER

Haverá melhor voz entre o nosso mar e os outros todos?

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Last Drop



By Ben Goossens

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Cesária Évora / Sodade

Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até bô voltà

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Cesária Évora / Cesaria Evora - Sodade (live)

Dois instantes


Ele dizia: “Sou imortal porque não tenho onde cair morto”. E ela ria muito enquanto lhe esfregava as costas frias e lhe via as marcas das feridas que eram cada vez mais fundas e mais feias.
Durante a noite não dormia. O frio não o deixava sossegar e ela queria estar sempre atenta para o poder aquecer. P. sentia-se impotente, como se tudo valesse nada e as cores não fossem mais do que pequenas contas enfiadas em fios frágeis e invisíveis.
Ele dizia: “ São as tuas mãos que não me deixam morrer já”. E ela deixava-se cair no sofá que era o corpo dele magro e insensível ao seu peso.
De manhã abria os olhos muito devagar. A luz rara fazia-lhe cócegas nas pálpebras e no nariz e ela passava-lhe um pano molhado para o manter sereno. J. pensava no tempo que poderia aquilo ainda durar, como se nenhum dos dias fosse real e as horas não fossem mais do que uma permissão débil para respirar um pouco mais.


Filipa Rodrigues

terça-feira, 5 de junho de 2007

fatal attraction


By Ben Goossens

António Variações - Humanos - A culpa é da vontade - Sic N.

A culpa é da vontade

Se um dia puderes ver o que eu digo em voz esganiçada,
Se noutro dia conseguires perceber os meus gritos agudos,

Da janela ou da vida… do sonho ou realidade…

Se um dia conseguires andar entre muros de pedra e arame farpado,
Se noutro dia puderes libertar-te do peso da fortuna e do sol,

Do vento ou da pressão… da sinfonia ou cor…

Se um dia te vires privado do poder da escolha errada,
Do passo mal calculado,
Da necessidade feroz de ser outra coisa…


A culpa é da vontade!

Filipa Rodrigues

segunda-feira, 4 de junho de 2007

dreamy recollection



By Yuji Nishimoto

sonho...

"Vêem-no? Estão a ver-lhe alguma a história? Vêem alguma coisa? Até parece que estou a tentar convencer-vos de um sonho - tentativa inútil porque o relato de um sonho não transmite a sensação-sonho, aquele emaranhado de absurdos e surpresas, o desespero na angústia de sermos aprisionados, a sensação de sermos presas do inacreditável que é verdadeira essência dos sonhos...
Fez um instante de silêncio.
- ... não, é impossível; é impossível transmitir a sensação-vida de uma época que vivemos - aquilo que constrói as suas verdades, o seu significado - a sua penetrante e subtil essência. É impossível. Vivemos como sonhamos - sós..."
In O Coração das Trevas, Joseph Conrad

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Kiss...


By Matthew Alan

Carta a J.

Ainda te posso escrever, sabes? Neste tempo que é só meu, neste espaço que ninguém molesta posso ainda escrever-te.

Se me voltares a agradecer palavras mando-te embora! Peço para voltares a ser apenas uma memória.

O nosso destino não foi traçado para o percorrermos sozinhos, cada um para o seu lado. Tu sabes isso, ainda que nos seja tão difícil de aceitar.

Eu, de um lado, tu do outro, mas unidos pelas palavras que de nós brotam como se fôssemos terra húmida; unidos pela total ausência da necessidade de agradecimento e confissão; juntos pelo simples prazer desse sentido de existência paralela.

E é a distância que agora nos salva, essa mesma distância que outrora nos foi tão cruel e quase nos asfixiou. Essa que se entrepunha lá por casa, pela rua enquanto passeávamos abandonados à sensação ilusória de liberdade, pelos lençóis que escolhíamos sem grande exigência.

Atrevemo-nos tanto. Tínhamos tanta força, tanta coragem para viajar sem interrupções demoradas. Frágeis as palavras que lançávamos aos outros. Vincado o nosso futuro que teimávamos em construir a desfavor do vento.

Se tivéssemos sido logo abalroados pela velocidade da vida que ousávamos levar. Se alguém nos tivesse parado a tempo de conseguirmos escolher outras pedras coloridas, outros aquários disformes, outras mãos velhas, outras carpetes usadas, outras casas estranhas. A cozinha visitada, o quarto arrombado, o gira discos estragado. Teria sido tudo tão mais fácil e leve e bonito.

Quisemos tudo e estragamos o silêncio que se impunha em quase todos os momentos. Fomos ávidos por flores e frutos e terra manchada pelo luar.

Um dia talvez voltemos a ser lâmina da mesma espada. O corte profundo na pele um do outro. O sentido mais antigo desta existência de vidro a que nos habituamos. O sonho esquecido na gaveta de recordações. A imagem dissipada no espelho que emolduramos.

Ainda te posso escrever, sabes? Nesta cidade deserta de corpos, nesta noite que me enlaça sem permissão posso ainda escrever-te.

Que nunca venhas para ficar!

Filipa Rodrigues