quarta-feira, 6 de junho de 2007

Dois instantes


Ele dizia: “Sou imortal porque não tenho onde cair morto”. E ela ria muito enquanto lhe esfregava as costas frias e lhe via as marcas das feridas que eram cada vez mais fundas e mais feias.
Durante a noite não dormia. O frio não o deixava sossegar e ela queria estar sempre atenta para o poder aquecer. P. sentia-se impotente, como se tudo valesse nada e as cores não fossem mais do que pequenas contas enfiadas em fios frágeis e invisíveis.
Ele dizia: “ São as tuas mãos que não me deixam morrer já”. E ela deixava-se cair no sofá que era o corpo dele magro e insensível ao seu peso.
De manhã abria os olhos muito devagar. A luz rara fazia-lhe cócegas nas pálpebras e no nariz e ela passava-lhe um pano molhado para o manter sereno. J. pensava no tempo que poderia aquilo ainda durar, como se nenhum dos dias fosse real e as horas não fossem mais do que uma permissão débil para respirar um pouco mais.


Filipa Rodrigues

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