sábado, 23 de junho de 2007

Sonhar acordado...

"Era essencialmente uma contradição, como se costuma dizer. As pessoas consideram-me sério e magnânimo, ou alegre e estouvado, ou sincero e fervoroso, ou negligente e descuidado. Era todas essas coisas ao mesmo tempo e, para além delas, era mais alguma coisa, alguma coisa de que ninguém suspeitava e eu menos do que toda a gente. Aos seis ou sete anos costumava sentar-me à bancada do meu avô e ler-lhe enquanto ele cosia. lembro-me vivamente do meu avô nos momentos em que, comprimindo o ferro quente contra a costura de um casaco, parava, de pé, com uma das mãos por cima da outra, na pega do ferro, e olhava pela janela, sonhadoramente. Lembro-me melhor da expressão do seu rosto, quando sonhava assim, do que do conteúdo dos livros que lia, das conversas que tínhamos ou das minhas brincadeiras na rua. Costumava perguntar a mim mesmo que sonharia ele, que seria que o levava para fora de si próprio. Por mim, ainda não aprendera a sonhar acordado, estava sempre lúcido, no momento presente e todo inteiro. Mas o sonhar do meu avô fascinava-me. Sabia que ele não tinha qualquer relação com o que estava a fazer, que não dedicava o mínimo pensamento a nenhum de nós, que estava sozinho e, estando sozinho, era livre. Eu nunca estava sozinho, principalmente quando não me encontrava com mais ninguém."

In Trópico de Capricórnio, Henry Miller

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