sexta-feira, 1 de junho de 2007

Carta a J.

Ainda te posso escrever, sabes? Neste tempo que é só meu, neste espaço que ninguém molesta posso ainda escrever-te.

Se me voltares a agradecer palavras mando-te embora! Peço para voltares a ser apenas uma memória.

O nosso destino não foi traçado para o percorrermos sozinhos, cada um para o seu lado. Tu sabes isso, ainda que nos seja tão difícil de aceitar.

Eu, de um lado, tu do outro, mas unidos pelas palavras que de nós brotam como se fôssemos terra húmida; unidos pela total ausência da necessidade de agradecimento e confissão; juntos pelo simples prazer desse sentido de existência paralela.

E é a distância que agora nos salva, essa mesma distância que outrora nos foi tão cruel e quase nos asfixiou. Essa que se entrepunha lá por casa, pela rua enquanto passeávamos abandonados à sensação ilusória de liberdade, pelos lençóis que escolhíamos sem grande exigência.

Atrevemo-nos tanto. Tínhamos tanta força, tanta coragem para viajar sem interrupções demoradas. Frágeis as palavras que lançávamos aos outros. Vincado o nosso futuro que teimávamos em construir a desfavor do vento.

Se tivéssemos sido logo abalroados pela velocidade da vida que ousávamos levar. Se alguém nos tivesse parado a tempo de conseguirmos escolher outras pedras coloridas, outros aquários disformes, outras mãos velhas, outras carpetes usadas, outras casas estranhas. A cozinha visitada, o quarto arrombado, o gira discos estragado. Teria sido tudo tão mais fácil e leve e bonito.

Quisemos tudo e estragamos o silêncio que se impunha em quase todos os momentos. Fomos ávidos por flores e frutos e terra manchada pelo luar.

Um dia talvez voltemos a ser lâmina da mesma espada. O corte profundo na pele um do outro. O sentido mais antigo desta existência de vidro a que nos habituamos. O sonho esquecido na gaveta de recordações. A imagem dissipada no espelho que emolduramos.

Ainda te posso escrever, sabes? Nesta cidade deserta de corpos, nesta noite que me enlaça sem permissão posso ainda escrever-te.

Que nunca venhas para ficar!

Filipa Rodrigues

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