domingo, 20 de maio de 2007

Quarto de Pensão

Há quanto tempo viajamos? Para quê? Se já não reparamos nas paisagens.
Atravessámo-las da mesma maneira que a solidão nos obrigou a percorrer essas outras paisagens de cinza que sobrevivem na memória.
Viajamos porque é necessário enfrentarmos o desamparo dos dias, ao mesmo tempo que procuramos um lugar para descansar e nele ansiarmos por um regresso.
Um nome, um nome apenas, evocando alguém, um lugar ou uma coisa, é a bagagem suficiente para avançar pela noite dentro, esperar a morte, ou iniciarmos o regresso...
Alugámos um quarto. Pernoitaremos aqui. Para lá das paredes deste quarto, na vasta noite do mar, existe uma ilha. Vê-la-emos ao amanhecer.
Chegámos à aldeia ao luso-fusco. Entrámos nela por um largo onde uma rua se abre em direcção ao mar.
A enseada que serve de porto de abrigo avança pela terra adentro. Fecha-se como uma mão à tempestade. É um lugar seguro para os barcos e para as lágrimas da alma.
Mas não há lágrimas na verdaeira tristeza, assim como não há riso na alegria. Falo duma tristeza e duma alegria fundas, escuras, como as minas escavadas, ano após ano, para procurar um veio de ouro.
Lá fora, nas ruas e nos largos, uma luminosidade diáfana coalha, suavemente nas mãos antigas das mulheres.
- Quem chega, etéreo, do outro lado da linha do horizonte?
Quem toca as minhas pálpebras fechadas? Onde se ergue o silêncio dos dias queimados pela paixão? Quem está sobre a minha boca, com este ardor a sal?
Ouve-se o mar, longe daqui, e eu digo:
- Andei tempo a mais pelas ruas. Vivi nelas ao sabor do vento. Dormi em casas abandonadas, e nunca conheci ninguém que me amasse. Encostando-se ao vidro da janela, a Helena diz:
- E se nos calássemos enquanto a memória se esvazia. Está tudo por acontecer. Mesmo o sono, se vier, terá um peso de lume, um sabor a terras mortas e areias salgadas.
Não sei...está tudo ainda por acontecer.

In Anjo Mudo, Al Berto

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